O filme acabou e eu não podia deixar a sala de cinema. Um pouco era vontade de esconder os olhos ainda marejados pelas lágrimas incontidas durante a sessão; outro tanto era um adiamento, um tempo até que eu pudesse encarar a vida fora, a mesma vida que estivera ali revelada pela ficção.
Na sala escura, eu estava protegido: a luz projetiva se apaga e, por isso, as histórias têm início-meio-fim. Se chegasse à rua, eu teria de me ver com o ininterrupto, aquela sociedade cindida, o fosso cavado entre uns e outros – e eu não podia mais. Não haveria de fingir que o carinho e a gentileza pudessem amenizar a dominação – essa forma brasileira de pôr açúcar para disfarçar o amargo da arrogância, de fazer afago depois da ordem: fica aí no seu lugar. Era eu, ali, quem precisava me pôr no meu lugar…
A luz da plateia acendeu e era já impossível negar de onde eu vinha. Vi pessoas se retirando e muitas pareciam indiferentes, sorriam como se acabassem de ver uma comédia da nova safra brasileira. O filme faz rir (importante dizer, para quem ainda não o viu), mas o risível nele somos nós mesmos e, por isso, incomoda. Ri-se da hipocrisia. Ri-se das nossas desumanas relações, dos nossos discursos incoerentes. Grande parte da audiência que seguia ria o riso dos outros, impassível e de alma lavada. Congelei o passo. Não pude marchar aquela mesma passeata. Pus-me à distância e pensei: só chego à rua se puder ser salvo pelo perdão – eis o que tenho feito.
Em nome próprio e de muitos que não sabem de mim (e talvez não saibam de si), quero me desculpar. Peço perdão pelas senhoras do Jockey Club que conseguiram aprovar uma norma que proíbe o uso da piscina às babás de seus filhos. Peço perdão pelos engenheiros primeiros que projetaram os quartos de empregada, claustrofóbicos e insalubres, dentro-e-fora da casa de acordo com a conveniência dos patrões. Perdão a todos que servem nas ceias de natal e lavam pratos enquanto os convidados celebram o nascimento de Jesus. Perdão a quem faz a comida e nunca foi convidado para comer. Perdão em nome dos congressistas que votaram contra os direitos das empregadas domésticas, muitos advogando em causa própria, com denúncias de trabalho escravo em suas fazendas. Perdão, perdão, perdão…
Dois dias se passaram e não exauri as culpas coletivas. Em mim, no entanto, uma chama acendeu – um chamamento, eu diria. Posso não mudar o mundo, mas a minha vida já mudou… Não é esse o alcance da arte?